No outro dia no vestiário vesti a minha farda de um branco quase imaculado, coloquei as canetas, a lanterna para avaliar as pupilas no bolso e subi as escadas para a unidade de cuidados intensivos cirúrgicos de um qualquer hospital… durante a subida desejava para mim mesmo que a chefe de equipa não me atribuísse os doentes que estivessem num estado mais critico… mas o meu secreto pedido não se concretizou. O turno estava a decorrer com normalidade ou seja muito trabalho para poucos braços!
A hora das visitas havia chegado, o coração começou a bater mais forte, a respiração acelerou mas pouco.
- Senhor enfermeiro está ali a mulher do senhor Aníbal.
- Pode pedir para entrar se fizer o favor, obrigado! – Respondi eu respirando fundo e inconscientemente olhando para o tecto talvez pedindo ajuda…
Aníbal um homem na casa dos 30 anos pai de dois filhos pequenos, cujo infortúnio tinha sido pendurar o fio do estendal num 6º andar no dia do aniversário do filho mais novo que fazia 3 anos. Desequilibrou-se e caiu…
A mulher entrou receosa na unidade, é-lhe pedido que desinfecte as mãos e que se dirija para a cama do marido. Olhei para a senhora e fui apanhado de surpresa, ela estava grávida, devia estar de 7 meses… voltei a respirar fundo e cerrei os dentes, pois a revolta havia começado a invadir-me o espírito. A senhora de ar modesto de roupas simples caminhou em minha direcção, estendi-lhe a mão para a cumprimentar e soltei um sorriso sincero. A senhora respondeu da mesma maneira e perguntou logo de imediato.
- Senhor enfermeiro como está o meu marido! Sabe nós temos dois filhos e estamos à espera do 3º para breve e ele é o único que trabalha lá em casa, é que tenho uma deficiência nas pernas e ninguém me dá trabalho.
O marido encontrava-se deitado na cama, entubado porque estava a respirar de uma forma artificial, ou seja, estava ligado a um ventilador que o ajudava a respirar, mas o pior é que tinha estado todo o dia a perder massa encefálica pelos orifícios nasais e auditivos o que não é de todo um bom prognóstico. Uma revolta ainda maior começou a tomar conta de mim, como era possível alguém ser “castigado” desta forma? Por onde andava a justiça deste mundo… e Deus, por onde vagueava Ele?
- Senhor enfermeiro ele vai ficar bom? - Perguntou-me a mulher com os olhos a lacrimejar.
Cerrei os dentes com mais força ainda, para não deixar uma lágrima cair e roubar desta forma a esperança daquela mulher. Convidei-a a sentar-se e segurando-lhe nas mãos respondi. – O seu marido teve um acidente muito grave… ele vai sobreviver, mas… mas com certeza que vai ficar com sequelas, ou seja, vai ficar com limitações para o resto da vida, mas essas limitações podem ser reduzidas com reabilitação… compreende o que estou a dizer? – Perguntei com uma voz tranquila e empática.
- Sim estou a perceber senhor enfermeiro, está-me a dizer que ele não vai ser o mesmo mas que há esperança de que ele recupere alguma coisa… só espero que ele possa pegar no bebé ao colo…?!
Estava a ser difícil conter tanta revolta e tristeza, as lágrimas começaram a inundar-me os olhos, a voz custava-me a sair, o nó na garganta sufocava, sufocava cada vez mais… consegui engolir em seco e com a mão limpar os olhos. A senhora olhou para mim, abraçou-me, começou a chorar e disse. – Eu sei que vocês estão a fazer tudo o que podem, obrigado! - O abraço foi prolongado e terapêutico tanto para ela como para mim. A mulher pediu-me se podia ficar mais um pouco com o marido, a esse pedido respondi com um. – Não pode, deve. – E deixei-a sentada de mão dada com o marido.
Medianamente recomposto deste duro embate, a senhora auxiliar de acção médica informou-me que o pai e a mãe da menina Catarina estavam lá fora para a visitar… Respondi que sim, mas que desinfectassem as mãos antes de entrarem. O coração temporariamente tranquilizado por aquele abraço e pelas palavras de gratidão pelo nosso trabalho, recomeçava novamente a bater ainda mais forte… a Catarina uma menina de apenas 18 anos… segundo informação, estava um bonito dia e o namorado queria ir dar um passeio com ela. O pai da menina deu permissão. A filha mais velha que estava grávida de 8 meses verbalizou também ter vontade de ir com o casal de namorados. O pai assertivamente deu o seu consentimento, mas advertiu. – Tem cuidado pois levas as minhas duas filhas e o meu futuro neto?! Vai devagar, eu e a minha esposa seguimos atrás de vocês ok?
O rapaz acenou afirmativamente com a cabeça e lá seguiram… tudo decorria tranquilamente, quando o pior aconteceu… pensa-se que devido ao rebentamento de um pneu da frente do carro, este se despistou e caiu por uma ribanceira. Os pais que circulavam atrás atónitos com o sucedido telefonaram para o 112.
O rapaz saiu ileso, a irmã mais velha ficou paraplégica, conseguiu-se salvar o bebé, mas infelizmente a menina devido ao violento traumatismo craniano, encontrava-se em morte cerebral. Depois desta breve história que rapidamente me relembrei devido à presença dos pais na unidade… o nó sufocante na garganta voltou novamente a apertar, as questões voltaram a ser colocadas, onde está a justiça neste mundo? Porquê ela? Porquê tanta dor? E Deus, por onde vagueava Ele?
Os familiares cumpriram o pedido e desinfectaram as mãos antes de entrarem na unidade e com um olhar resignado cumprimentaram-me e dirigiram-se para a cama da sua menina que repousava num sono profundo. Quem olhava para ela tornava-se difícil acreditar que estava morta, cerebralmente morta. A sua face serena, simpática e juvenil apenas apresentava dois pequenos cortes. Um na face e outro na testa. Mas o mal não está visível, o seu cérebro, as suas funções cognitivas, a manutenção das suas funções básicas de vida estavam irremediavelmente perdidas… como é difícil pensarmos que com o imenso avanço da ciência e em especial ao nível da saúde, ainda hoje se pronunciem palavras como, para sempre, irremediavelmente, inevitavelmente, irreparavelmente…
A menina estava na lista para dadora de órgãos, ia amanhã cedo para o bloco operatório para dar os seus jovens e saudáveis órgãos, para que outros tenham uma 2ª oportunidade para enfrentar os por vezes traiçoeiros caminhos da vida.
O que mais custava neste cenário era ver a família fazer o luto de uma menina que tinha um aspecto tão saudável, tão calmo, tão jovial, mas que estava morta… qual o tamanho da dor daquela família? Era impossível quantificar, era incomensurável.
Quem cá trabalha as 24 horas à cabeceira do doente/utente, por muito que nos façamos de fortes (ou seja lá isso o que for), também nós temos pais, filhos, amigos, também nós sofremos e muito, muitas vezes devido ao sentimento de impotência para lutar contra esta vil personagem que se chama morte. Mas nada comparado com o sofrimento sentido pelas famílias.
O extenuante turno terminou, desci as escadas de volta ao vestiário, vesti a roupa de cidadão anónimo e olhando para o tecto disse baixinho. – Continuo a acreditar em Ti, amanhã gostava de dar só boas notícias, conto contigo…
A hora das visitas havia chegado, o coração começou a bater mais forte, a respiração acelerou mas pouco.
- Senhor enfermeiro está ali a mulher do senhor Aníbal.
- Pode pedir para entrar se fizer o favor, obrigado! – Respondi eu respirando fundo e inconscientemente olhando para o tecto talvez pedindo ajuda…
Aníbal um homem na casa dos 30 anos pai de dois filhos pequenos, cujo infortúnio tinha sido pendurar o fio do estendal num 6º andar no dia do aniversário do filho mais novo que fazia 3 anos. Desequilibrou-se e caiu…
A mulher entrou receosa na unidade, é-lhe pedido que desinfecte as mãos e que se dirija para a cama do marido. Olhei para a senhora e fui apanhado de surpresa, ela estava grávida, devia estar de 7 meses… voltei a respirar fundo e cerrei os dentes, pois a revolta havia começado a invadir-me o espírito. A senhora de ar modesto de roupas simples caminhou em minha direcção, estendi-lhe a mão para a cumprimentar e soltei um sorriso sincero. A senhora respondeu da mesma maneira e perguntou logo de imediato.
- Senhor enfermeiro como está o meu marido! Sabe nós temos dois filhos e estamos à espera do 3º para breve e ele é o único que trabalha lá em casa, é que tenho uma deficiência nas pernas e ninguém me dá trabalho.
O marido encontrava-se deitado na cama, entubado porque estava a respirar de uma forma artificial, ou seja, estava ligado a um ventilador que o ajudava a respirar, mas o pior é que tinha estado todo o dia a perder massa encefálica pelos orifícios nasais e auditivos o que não é de todo um bom prognóstico. Uma revolta ainda maior começou a tomar conta de mim, como era possível alguém ser “castigado” desta forma? Por onde andava a justiça deste mundo… e Deus, por onde vagueava Ele?
- Senhor enfermeiro ele vai ficar bom? - Perguntou-me a mulher com os olhos a lacrimejar.
Cerrei os dentes com mais força ainda, para não deixar uma lágrima cair e roubar desta forma a esperança daquela mulher. Convidei-a a sentar-se e segurando-lhe nas mãos respondi. – O seu marido teve um acidente muito grave… ele vai sobreviver, mas… mas com certeza que vai ficar com sequelas, ou seja, vai ficar com limitações para o resto da vida, mas essas limitações podem ser reduzidas com reabilitação… compreende o que estou a dizer? – Perguntei com uma voz tranquila e empática.
- Sim estou a perceber senhor enfermeiro, está-me a dizer que ele não vai ser o mesmo mas que há esperança de que ele recupere alguma coisa… só espero que ele possa pegar no bebé ao colo…?!
Estava a ser difícil conter tanta revolta e tristeza, as lágrimas começaram a inundar-me os olhos, a voz custava-me a sair, o nó na garganta sufocava, sufocava cada vez mais… consegui engolir em seco e com a mão limpar os olhos. A senhora olhou para mim, abraçou-me, começou a chorar e disse. – Eu sei que vocês estão a fazer tudo o que podem, obrigado! - O abraço foi prolongado e terapêutico tanto para ela como para mim. A mulher pediu-me se podia ficar mais um pouco com o marido, a esse pedido respondi com um. – Não pode, deve. – E deixei-a sentada de mão dada com o marido.
Medianamente recomposto deste duro embate, a senhora auxiliar de acção médica informou-me que o pai e a mãe da menina Catarina estavam lá fora para a visitar… Respondi que sim, mas que desinfectassem as mãos antes de entrarem. O coração temporariamente tranquilizado por aquele abraço e pelas palavras de gratidão pelo nosso trabalho, recomeçava novamente a bater ainda mais forte… a Catarina uma menina de apenas 18 anos… segundo informação, estava um bonito dia e o namorado queria ir dar um passeio com ela. O pai da menina deu permissão. A filha mais velha que estava grávida de 8 meses verbalizou também ter vontade de ir com o casal de namorados. O pai assertivamente deu o seu consentimento, mas advertiu. – Tem cuidado pois levas as minhas duas filhas e o meu futuro neto?! Vai devagar, eu e a minha esposa seguimos atrás de vocês ok?
O rapaz acenou afirmativamente com a cabeça e lá seguiram… tudo decorria tranquilamente, quando o pior aconteceu… pensa-se que devido ao rebentamento de um pneu da frente do carro, este se despistou e caiu por uma ribanceira. Os pais que circulavam atrás atónitos com o sucedido telefonaram para o 112.
O rapaz saiu ileso, a irmã mais velha ficou paraplégica, conseguiu-se salvar o bebé, mas infelizmente a menina devido ao violento traumatismo craniano, encontrava-se em morte cerebral. Depois desta breve história que rapidamente me relembrei devido à presença dos pais na unidade… o nó sufocante na garganta voltou novamente a apertar, as questões voltaram a ser colocadas, onde está a justiça neste mundo? Porquê ela? Porquê tanta dor? E Deus, por onde vagueava Ele?
Os familiares cumpriram o pedido e desinfectaram as mãos antes de entrarem na unidade e com um olhar resignado cumprimentaram-me e dirigiram-se para a cama da sua menina que repousava num sono profundo. Quem olhava para ela tornava-se difícil acreditar que estava morta, cerebralmente morta. A sua face serena, simpática e juvenil apenas apresentava dois pequenos cortes. Um na face e outro na testa. Mas o mal não está visível, o seu cérebro, as suas funções cognitivas, a manutenção das suas funções básicas de vida estavam irremediavelmente perdidas… como é difícil pensarmos que com o imenso avanço da ciência e em especial ao nível da saúde, ainda hoje se pronunciem palavras como, para sempre, irremediavelmente, inevitavelmente, irreparavelmente…
A menina estava na lista para dadora de órgãos, ia amanhã cedo para o bloco operatório para dar os seus jovens e saudáveis órgãos, para que outros tenham uma 2ª oportunidade para enfrentar os por vezes traiçoeiros caminhos da vida.
O que mais custava neste cenário era ver a família fazer o luto de uma menina que tinha um aspecto tão saudável, tão calmo, tão jovial, mas que estava morta… qual o tamanho da dor daquela família? Era impossível quantificar, era incomensurável.
Quem cá trabalha as 24 horas à cabeceira do doente/utente, por muito que nos façamos de fortes (ou seja lá isso o que for), também nós temos pais, filhos, amigos, também nós sofremos e muito, muitas vezes devido ao sentimento de impotência para lutar contra esta vil personagem que se chama morte. Mas nada comparado com o sofrimento sentido pelas famílias.
O extenuante turno terminou, desci as escadas de volta ao vestiário, vesti a roupa de cidadão anónimo e olhando para o tecto disse baixinho. – Continuo a acreditar em Ti, amanhã gostava de dar só boas notícias, conto contigo…
1 comentário:
Cala-te anarca do catano!!!!
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Miguel
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