quarta-feira, 30 de maio de 2007

O Caminho Insondado

No outro dia decidi ir passar uns dias longe de tudo e todos, pedi a uma amiga se me podia emprestar a casa dos pais, que fica algures perdida nas beiras.

Depois de já tarde almoçar, quis conhecer o sítio. Abri a porta e tinha dois caminhos possíveis o do lado esquerdo pelo qual tinha que passar pela povoação, ou, o da direita que parecia bem mais rústico e tentador. A vergonha e a vontade de estar sozinho, fizeram-me escolher o da direita, o caminho insondado e da solidão. O tempo apresentava-se nublado, escuro e ameaçava chuva, mas corajosamente vesti o meu velhinho casaco ensebado, respirei fundo e pensei, o casaco há-de me proteger.

Comecei a caminhar timidamente, observando a passagem que se apresentava em meu redor. A chuva começou a dar sinal de vida, pequenas gotas vinham dizer olá ao velhinho casaco. Encetei pelo caminho de cabras, estreito, austero e interessante. A vegetação verde embelezava o quadro, sendo que o rio Dão fazia de anfitrião.

Passada uma hora de algum esforço, a chuva começou a cair mais vigorosa, coloquei o capuz e apertei a gola para melhor me proteger. Passei por um moinho há muito abandonado e cansado de tanto trabalhar. Tinha um ar simpático e sólido, pareceu-me ouvir água a cair, andei mais um pouco e lá estava ela, uma bonita queda de água. Parei para contemplar a água a correr e pensei… porquê será que gostamos tanto de a ver? Será porque está sempre em movimento? Porque é livre e desimpedida? Ou porque nos faz relembrar a condição humana, ou seja, que a vida tal como a água, não pára e que ao contrário da água, tem um fim e que por isso devemos viver de uma forma intensa? A água conhece as entranhas dos montes e das montanhas, desce e passeia-se no rio pelos vales e encostas, e, termina no mar onde tem a possibilidade de conhecer o fundo deste. Ai espera que o sol a aqueça para ir laurear nas nuvens, que mais tarde ou mais cedo vai cair e irá fazer novamente a longa e bela viagem, sempre! Fecho os olhos e deixo-me ali ficar a escutar o envolvente som da água a deslizar por entre as pedras de granito.
Continuo a caminhada, digo raios e coriscos por me ter esquecido do cachimbo, era o sítio ideal para tranquilamente usufruir dele. Meto a mão ao bolso e encontro um cigarro perdido. Fumei-o debaixo duma nogueira, porque a chuva era algo intensa. Pensei em deitar a beata para o chão, mas fui assaltado por um pensamento… depois de cerca de duas horas e meia de caminho, o sítio era tão remoto, que os únicos vestígios da presença humana eram, o velho moinho abandonado e as minhas pegadas marcadas na terra molhada. Decidi guardar a beata no bolso e deita-lo num local mais apropriado.
Avançando ao longo do caminho, fui abordado por um aroma adocicado, intensificado pela humidade da chuva, não sei que árvore ou flor o produzia, mas bendita sejas. Fico chateado por ter fumado aquele cigarro perdido, pois impediu-me de usufruir o aroma na sua plenitude. Um dia tenho que deixar de fumar, confesso eu baixinho ao meu velhinho casaco.
A chuva começou a diminuir e acaba por cessar, decidi regressar. Ao longo do caminho vou matutando, quem me dera conhecer o nome de todas a flores e árvores que se atravessam à minha frente… mas para quê? O que interessa é que são belas e eu posso aprecia-las, é como a vida.
Chego ao ponto de partida com o coração cheio e satisfeito por ter escolhido o caminho anónimo e menos trilhado. Amanhã se me apetecer estar mais perto das pessoas, talvez vá pelo da esquerda… descalço as botas todas cobertas de lama, penduro o meu velhinho casaco ensebado, sorriu e desabafo - mais uma vez pude contar contigo amigo… até amanhã!

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Cancro, maldito sejas!

Deitado no leito penso, relembro-me do dia em que te conheci, pele ebúrnea, sorriso contagiante, trato afável, de olhar vivo e inteligente… apaixonei-me de imediato! Bela história de amor… agora acamado neste cárcere, impotente para cuidar de mim, sondas para comer, sondas e mais sondas. Entras no quarto e sorris, eu já não consigo falar, já não consigo expressar o quanto gosto de ti.
A enfermeira pede licença e dá-me mais morfina, as dores acalmam… mas pouco. Não é tanto o corpo que me dói, é saber que ficou tanto por fazer, tanto por dizer… o já não conseguir acariciar-te, nem provar o doce e discreto sabor do batom de morango que tu sempre colocas.
Sinto que o final está próximo, sinto que a bela história de amor não vai ter um final feliz, pois a vida real é bem mais áspera… o cancro manhoso como só uma pessoa má sabe ser, esconde-se, camufla-se, foge, arquitecta mais um ataque, desgraçado e maldito sejas. Despedes-te desejando veres-me amanhã, mas já cá não vou estar, tenho cada vez mais dificuldade em respirar, em manter os olhos abertos, os sons esvanecem-se, a morte aproxima-se com passos cadenciados, sinto calafrios no corpo, fecho os olhos e imagino que estás deitada ao meu lado e tento balbuciar as palavras - não chores!

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Murmúrios Incessantes

O corredor psiquiátrico afunilava qualquer esperança de fuga… os murmúrios incessantes, martelavam incansáveis a mente ansiosa e adulterada de João. Quero fugir, eles vêm ai - grita horripilantemente… Corrida desmedida, passada insegura, saliva voraz que goteja e se impregna na roupa, visão atroz do futuro. As vozes não deixam escapar ninguém. O enfermeiro observa a situação, João num acto de loucura atira-se a este, vendo nele um dos outros… prisma pervertido da nossa realidade, pois a sua é bem diferente e bem mais sofredora! Os dois caiem, os olhos de João só conseguem contemplar a liberdade para lá do corredor. Agarram-se, debatem-se… realidade contra ilusão, razão contra delírio, eis que João está perto do seu móbil. O enfermeiro em desvantagem tenta conte-lo pela robustez dos braços… mas o medo que se apoderara de João era superior. Os músculos destes dois homens confrontam-se… João consegue desprender-se e precipita-se violentamente contra as grades da janela com o objectivo de alcançar a fuga, uma, duas vezes… o enfermeiro cansado mas esperançado, faz uso do seu mais poderoso recurso, a palavra. Aquela mente possuída pela alienação, incapaz de distinguir aliado de adversário começa a ceder à palavra, à argumentação. João olha para trás, o suor ensopava a farda do enfermeiro, bem como pequenas pinceladas de sangue que escorriam da comissura labial. Este de braços abertos, expressa de uma forma firme mas gentil - não tenhas medo João, vou ajudar-te. Num momento de lucidez, deixa-se cair de joelhos, lágrimas vertem por entre as mãos, gotas que parecem perguntar, porquê, porquê? O enfermeiro avança, estende-lhe a mão e diz - anda, anda dormir!